O outro e o próximo!

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Com o surgimento da pandemia do novo coronavírus, passamos a ouvir, reproduzir e praticar várias palavras de ordem. Entre elas a do distanciamento social (físico) como medida de proteção à saúde. Por essa razão e outras associadas, houve (e há) comportamentos nos mais diversos sentidos. Muitos que estavam próximos se distanciaram. Outros que estavam distantes se aproximaram. Em muitos casos quem já estava próximo se aproximou mais. E outros que estavam distantes, distanciaram-se mais ainda.

Nesse contexto, podemos nos perguntar: Em que consiste ser/estar distante ou próximo? Quem é o meu próximo ou quem são nossos próximos, sobretudo nas situações adversas? Como ser/estar próximo mesmo à distância? Por que, estando próximos, muitas vezes permanecemos distantes ou até ausentes? Essas e outras questões nos fazem perceber que distância e proximidade não são meros conceitos geográficos. E que estar próximo ou distante, geograficamente falando, não tem o mesmo significado para todas as pessoas.

Sem que esse assunto possa parecer anacrônico e mesmo que pareça a alguns ou a muitos, é pertinente refletir sobre o outro e o próximo. Como distingui-los? O outro pode comparecer diante de mim como uma ameaça, um inimigo, um ser indiferente e descartável, um concorrente, um objeto, um abjeto, etc. De qualquer forma, a pessoa do outro sempre me desperta, me evoca, me alerta… Também pode me ferir, me provocar ou me inquerir. A maneira como eu reajo às suas evocações ou provocações revela quem eu sou. E posso revelar-me como um outro (apenas) ou como um próximo.

Ser próximo é difícil e, por vezes, extremamente difícil. É mais do que ser o seguinte na fila do supermercado. Exige sair de si, colocar-se no lugar do outro, sem deixar de ser eu. Como ensinou o profeta, poeta, pastor, dom Pedro Casaldáliga (16/02/1928 – 08/08/2020), próximo é aquele de quem eu me aproximo movido pela força da misericórdia e da solidariedade. Esse companheiro de caminhada, cuja memória permanecerá para sempre e cujo exemplo de espiritualidade libertadora nos motiva a seguir, fez da vida uma luta incansável pela humanização da humanidade, pela libertação de todas as formas de violência e de opressão.

De acordo com Paulo Freire, o diálogo é mais que mera interlocução, troca de ideias, de informações e conhecimentos entre duas ou mais pessoas. Para o autor da “Pedagogia do Oprimido”, da “Pedagogia da Esperança” e de outras pedagogias libertadoras, o diálogo é uma categoria ontológica. Significa dizer que é um elemento constitutivo do ser humano. Pelo diálogo podemos nos libertar e nos humanizar. Se eu dialogo, posso compreender o outro. E, se compreendo, posso me transformar e ajudar a transformar realidades do mundo sólido e/ou da “modernidade líquida”.  Dialogar, aproximar-se e colocar-se no lugar do outro, daquele que sofre, é condição indispensável para a construção de uma sociedade mais humanizada!

Para que escrever?

Eis que num repente fui assaltado pela necessidade de escrever. E de escrever sobre as razões, o ato e o significado da escrita. Lembro muito bem do tempo em que escrever era tido como uma atividade para iluminados. A primeira vez que me aproximei de um escritor de livro fiz reverência como se fosse um supra-humano. Na minha cabeça, uma pessoa que escrevia e publicava livros merecia um respeito adicional porque carregava em si um dom incomum. Uma habilidade reservada a poucos, ou seja, a quem fosse capaz de se transcender pelas ideias bem formuladas.

Agora as coisas já não são bem assim. Os tempos são outros. Todos escrevem (ou quase todos), sobre muitos temas e muitos o fazem de qualquer jeito. Não que isso não seja um direito, talvez até uma necessidade. Afinal de contas, todos têm o que dizer, mesmo que seja só repetir o que os outros falam, apenas pela necessidade de mostrar que existem. Porém, há escritas que ferem de morte as regras básicas da língua. E mais do que isso: atentam contra o bom senso, o respeito ao diferente e ao divergente. Defendo que todos escrevam como conseguem, mesmo porque, infelizmente, a grande maioria neste país não escreve melhor em função de que o direito à educação mais ampla e de qualidade ainda segue restrito. Defendo também que todos têm o direito de expressão, contanto que aquilo que dizem ou escrevem não agrida a identidade e a dignidade de outrem.

Lembremos que “verba volant, scripta manent” (as palavras voam, os escritos permanecem). Embora hoje se possa “deletar” com facilidade o que se escreve, não esqueçamos que, antes de apagar, outros já podem ter feito “print”. Uma vez lançadas, as palavras vão produzir seu efeito, mesmo que se procure “recolhê-las” ou desdizê-las.  Isso sem falar daquilo que é dito ou escrito sem ser verdade, sendo meia-verdade (que é sempre meia-mentira) ou omissão total da verdade, apenas por conveniência. E, como se diz comumente, uma mentira dita ou escrita muitas vezes passa a parecer uma verdade, mas nunca a será verdadeiramente.

Voltemos à escrita. Essa é uma arte. Ser escritor ou escritora é ser artista. É diferente de ser escrevente, plagiante, copiante e colante. Escrever é um exercício que exige paciência, ambiente e concentração. Também requer muito trabalho e alguma inspiração. Textos que precisam ser escritos por alguma determinação externa ou mesmo interna, muitas vezes nascem como que em parto revestido de muita dor. Outros textos exigem de quem escreve que largue o que está fazendo e corra para dar-lhe vazão porque, do contrário, nascem “dentro da ambulância”. Aí é mais prazeroso do que doloroso. Escrever é, assim, algo meio sem lógica. Mas, escrever é um exercício de dar lógica às ideias, em qualquer estilo de escrita que seja.

Dizem que Deus escreve reto por linhas tortas. E muitos há que entendem isso lendo as Escrituras Sagradas, mesmo que essas palavras não estejam literalmente em qualquer de suas páginas. Daí que, se escrever é uma arte nobre (quase divina) no rol das linguagens, interpretar o que está escrito é irmã gêmea desta arte primeira. Escrever não é só pôr no papel e nas telas em sentido amplo, mas também inscrever na alma e na mente, no coração e na razão de quem escreve e de quem lê e interpreta. Portanto, trata-se de um ato que pode ser criador ou destruidor. Escrever, ler e interpretar são ações ambivalentes. Daí a responsabilidade de quem escreve ou fala, pois, como ensina o velho provérbio: “palavras ditas não voltam”.

Escrever quase sempre implica um ato posterior, ou até simultâneo, consubstanciado no ato de publicar, mesmo que seja para uma única pessoa ler. Dificilmente escrevemos para nós próprios e guardamos a “sete chaves”. Na publicação está a razão e o prazer de escrever. Escreve-se para publicar. E mais, para que alguém leia. Se gostarem e elogiarem, é ainda melhor. Que triste quando ninguém lê ou, mesmo lendo, não “curte”. Mas, a curtição depende do sentido ou não do que se escreve para quem lê. Vale aqui lembrar o que outrora escreveu Bertolt Brecht: “Um homem que tenha algo a dizer e não encontre ouvintes está em má situação. Mas, estão em pior situação ainda os ouvintes que não encontrem quem tenha algo a dizer-lhes”.

Sobre o que formulamos e a maneira como o fazemos retratam nossa identidade cultural e epistêmica. O que escrevemos, o que falamos ou apenas insinuamos, revelam nosso lugar social. Em geral falamos desde onde nossos “pés” pisam, embora não seja incomum falsearmos pisadas, ainda mais nesses tempos de pós-verdade, com suas abundantes e perniciosas fake news. Estando neste tempo, muitas vezes permeado de “temporais”, escrever é um ato de sobrevivência, de resistência, de persistência e também de desobediência às subserviências. À pergunta “por que escrevo?”, no livro “Ofício de Escrever”, Frei Betto, entre outras razões, afirma: “escrevo para sublimar minha pulsão e dar forma e voz à babel que me povoa interiormente”. Eu também! E para tentar organizar dentro de mim a babel que nos envolve!

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O amor ainda faz a diferença!

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O filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905 -1980), em uma de suas obras saiu-se com essa: “O inferno são os outros”. Devido às interpretações equivocadas que muitos fizeram da afirmação, resolveu explicar que não é bem assim, ou seja, nem sempre é assim. E disse, então, que os outros são o que existe de mais importante para nós, isto é, a possibilidade que temos de conhecermos a nós mesmos. A relação eu-tu ou eu-outros foi e é tema interminável de discussão dos filósofos. Não só deles, mas de todos, pois na alteridade residem nossas grandes complicações e nossas maiores realizações. Se, em determinadas situações, as relações humanas e sociais podem configurar uma espécie de inferno sentido ou imaginado, noutras podem recuperar, estabelecer ou antecipar o próprio paraíso perdido ou pretendido.

Queiramos ou não, somos lançados ao mundo para viver a alteridade, o encontro, a convivência, a socialização com os outros. E, nesta condição, podemos amar ou odiar; cultivar o respeito ou fomentar a estupidez; produzir o inferno ou procurar construir um “paraíso terrestre coletivo”. Conforme declarou o escritor francês Georges Bernanos (1888 – 1948), o infernal mesmo é não amar. Quem não ama ou perdeu a capacidade de amar, já está fazendo um experimento daquele “lugar/situação” temerário. Embora alguns creiam que o inferno não exista, não custa dar uma olhada às voltas e ver as situações infernais que são criadas e impostas pelo “eu” sobre o “tu” ou sobre o “nós”; por “eles” sobre “nós”, quando não por “nós” sobre “eles” e vice-versa e reversa. E, quase sempre, pelos ricos e poderosos sobre os pobres e vulneráveis.

Se o inferno é não amar, concordando com Bernanos, pode-se dizer também que é infernal ser indiferente diante do sofrimento, da dor e da morte dos outros. Se já é péssimo não amar e ser indiferente, o que dizer de quem odeia? E de quem (no singular e no plural) vive para plantar a cultura do ódio e espalhar suas sementes aos quatro ventos? O que dizer de governos e sistemas que produzem ódio o tempo todo ao invés de promoverem o bem comum? Que estimulam a compra e o uso de armas para impor a ordem ao invés de buscar o desarmamento de todos para garantir a paz.

Jesus – aquele que foi morto pelo ódio em função de seu amor inquieto – ensinou que o amor é a primeira e principal de todas as leis. Trata-se de um princípio fundamental e determinante em todos os tempos, lugares e circunstâncias. Não falo do amor fantasioso, mas daquele radical que se traduz em solidariedade, compartilhamento, comunhão, justiça social, vida digna para todos. Um sentimento fácil de perceber, difícil de definir e extremamente exigente em sua prática, se bem entendido e bem vivido. Parafraseando Cecília Meireles, ‘uma palavra que o sonho humano alimenta, e que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda’.

Se, por um lado, podemos não amar, permanecer indiferentes e apáticos diante dos outros que nos lançam apelos de alteridade e solidariedade, por outro, temos a possibilidade de fazer o contrário, ou seja, de amar em alto grau, porque o amor faz a diferença. Em última análise, amar é uma decisão pessoal, assim como odiar. Para além de qualquer conotação cafona, romântica ou folclórica, ou optamos pelo amor capaz de superar o racismo, o machismo, o autoritarismo, o individualismo, os fundamentalismos de toda espécie ou permitiremos que a barbárie siga avançando a passos largos sobre a nossa história.

Se sabemos que o inferno é não amar e se pressentimos, experimentamos ou imaginamos que não é uma sensação agradável, porque muitas vezes seguimos em sua direção? Se nós, enquanto seres humanos, podemos amar, por que será que ainda seguimos, seguem, seguiremos ou seguirão odiando? Diante de toda arbitrariedade, ódio, mentira, violência e estupidez, fica decretado que só vale o amor. E como escreveu Thiago de Mello, o poeta defensor dos direitos humanos, no poema intitulado Os Estatutos do Homem, no artigo XII, parágrafo único: “Só uma coisa fica proibida: amar sem amor”.

O pomar e a pandemia

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Francisco, o que você plantou em seu pomar? – Laranja e limão. Espera colher muito? – Vai depender da chuva, do sol, da própria planta, das pragas e do cuidado. Ele prosseguiu. –Tudo o que a gente planta, pode colher. E também pode não colher. Se não plantar, é certo que não colhe. Se plantar laranja, não irá colher pêssego, nem maçã. Se plantar coisa boa, tem boas chances de colher bons frutos. Se plantar espinheiro, irá colher espinhos. Se plantar vento, colherá tempestade… E assim seguiu Francisco com seus postulados e conclusões. 

Aproveitei, então, para fazer outras perguntas: O que espera para depois da pandemia? – Vai depender também. De que? – Do que estamos plantando. Como assim? – Tem gente plantando solidariedade, cuidado, aproximação mesmo à distância, abraços só no olhar e no falar… E continuou. – Mas, tem também muita gente se especializando na arrogância, no ódio, na indiferença, na insensibilidade, no negacionismo do óbvio, nas fake news, na intolerância, enfim, na estupidez. A conversa com seu Francisco seguiu por esses rumos. Aí me pus a refletir.

O depois da pandemia é uma incógnita. Sim, porque por ora não sabemos se haverá depois e nem para quem. E também não sabemos quando será o depois. Porém, podemos ter uma quase certeza: O depois será do jeito que quisermos. Mas, não só, pois nem sempre o que queremos se concretiza. Além disso, muitas vezes o que não queremos nos sobrevém de modo intempestivo e inevitável. É verdade também que, como vivemos em sociedade, tem vontades e arbitrariedades que podem nos levar ao caos, como é o caso.  

Escreveu Karl Marx outrora no Dezoito Brumário de Louis Bonaparte: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Porém, há muitas circunstâncias e condições pessoais, sociais, econômicas, ambientais e culturais que podem ser mudadas. Não fosse assim, a história seria sempre pré-determinada. Porém, ignorar as heranças e o contexto é como pretender colher maças de laranjeiras.  

Só haverá uma sociedade mais justa, solidária e humanizada se tivermos vontade, coragem e estratégias para construí-la. Não é uma pandemia que irá, por si só, tornar as pessoas melhores. Poderá, inclusive, embrutecê-las mais, como demonstra a realidade com o avanço do fascismo, do racismo e toda lista de “ismos” maléficos. Em última análise, tornar-se melhor ou pior do ponto de vista ético e humano é uma decisão pessoal e radical. Sempre é preciso decidir o que plantar. E isso só pode ser feito à luz do que se pretende colher. De antemão, o que se pode saber é que na semente está a colheita, embora esta também seja incerta.

Não obstante os muitos riscos e incertezas, plantar é preciso.  Plantar tendo em vista colher a curto, médio e longo prazo. Plantar no terreno da humanidade, porque o ser humano continua sendo um feixe de possibilidades. Entre elas está a sensibilidade solidária, que pode obter níveis mais ou menos generosos, a depender de vários fatores. Um deles é a capacidade de abertura para uma educação como processo de formação do caráter.              

É preciso educar-se e educar para a prática da solidariedade sistêmica, o que implica tomar consciência da complexidade dos sistemas organizativos e das relações sociais nas quais se está envolvido. A solidariedade enquanto sistema – com suas práticas correspondentes – é portadora de uma esperança vital porque nos arranca do mundo individualista, insensível e excludente e nos permite lutar pela concretização de outra ordem de mundo possível. Disse o poeta: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer… Pelos campos há fome em grandes plantações”. Vem, vamos embora plantar. Na verdade, quando perdemos a capacidade de plantar, cuidar e partilhar do melhor a quem necessita não haverá mais razão de viver!

O normal e o anormal na (des)ordem do dia

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O normal é não ser anormal. Óbvio demais. Mas, na vida, o que é o normal e o que é o anormal? Será uma questão de mera definição individual? Penso que não. Há coisas tidas como normais que não deveriam sê-lo. E há anormais que deveriam não sê-lo. Igualmente, há anormais que, de tanto sê-lo, acabam por não parecê-lo. Nem por isso passam a ser normais. Além do ser ou não ser, existe uma questão ainda mais derradeira: ser normal ou anormal em qual situação? No conjunto do palavreado, é sempre determinante ficar claro o assunto e a direção. Do contrário, pode-se tomar o ótimo por péssimo ou o inadmissível por bom.

Na (des)ordem do dia, tornou-se normal, importante, recomendado, necessário e até obrigatório utilizar máscara. Ocorre que estamos em um tempo anormal. Em outros tempos, a presença da máscara seria um indicativo de anormalidade de quem a estaria utilizando. Hoje, usá-la é prova da existência de uma anormalidade geral. E não usá-la passou a representar uma anormalidade dentro da anormalidade. Também aqui, como na regra matemática da multiplicação de dois números negativos, tem-se um resultado positivo: nesse caso para o coronavírus.

A máscara não resolve o problema no sentido de imunizar o usuário contra a Covid/19 – como muitos especialistas nos informam – embora constitua certa proteção, enquanto estamos sob as normas da pandemia. Eficiência de máscaras não é minha especialidade. Mas, não precisa ser especialista no assunto para diagnosticar que há muitas máscaras sendo utilizadas nas (des)ordens do dia com a finalidade de acobertar graves problemas sociais. As máscaras aí fazem exatamente o que são capazes de fazer: mascarar.

Na sociedade, existe um conjunto de anormalidades que precisam ser enfrentadas sem máscaras. Entre elas, a fome, a miséria e as desigualdades sociais. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano/2019 da ONU, o Brasil é o 7º país com mais desigualdade no mundo. Aqui, os bilionários são poucos e os miseráveis uma multidão sem fim. O homem mais rico do Brasil, Joseph Safra, dono do banco Safra, acumula mais de R$ 100 bilhões. Jorge Paulo Lemann e Marcel Hermann Telles, donos de quase todas as marcas de cerveja do país, somam juntos cerca de R$ 130 bilhões. Se esse valor dos cervejeiros fosse distribuído em partes iguais, 130 mil pessoas receberiam 1 milhão de reais cada e poderiam ter uma vida bem tranquila.  Daí a necessidade de taxar pesadamente as grandes fortunas e, por outro lado, diminuir ou isentar os pobres a fim de promover a justiça tributária.

O desemprego estrutural é outra anormalidade que vem sendo aprofundada pelo avanço excludente da mecanização e da automação, na lógica da quarta revolução industrial. Daí resulta um exército de trabalhadores desempregados, subempregados, donos do seu próprio precário negócio uberizado, enfim, jogados à própria sorte. Numa economia que primasse pela dignidade de todos os trabalhadores, teríamos a redução da jornada de trabalho com possibilidade de mais pessoas ocupadas com seus ganhos garantidos. O aumento dos postos de trabalho com renda e condições decentes contribuiria para achatar a curva (expressão em voga) das desigualdades sociais e econômicas.

Há anormalidades históricas que precisam ser continuamente desmascaradas, como: o colonialismo, o escravismo, o racismo, o machismo, o patriarcalismo, o fundamentalismo, o negacionismo, o terraplanismo, o fascismo, o capitalismo, o imperialismo e tantos outros “ismos” que nos impedem de ser o que temos direito de ser: uma nação feliz. Existe um conjunto de outras anormalidades a serem enfrentadas sem máscaras. Entre elas: a cultura do ódio, as diversas formas de violência, a arrogância, a intolerância, a barbárie, a falta de capacidade de ouvir, compreender, respeitar e dialogar com o outro/a porque ele/ela é, pensa e se comporta diferente do que eu. Esta categoria de anormalidades não está dissociada das demais mencionadas acima. E parece mesmo que elas são a expressão mais grave da existência daquelas.  

Por outro lado, há uma série de normalidades que devemos tornar reais e ampliar suas potencialidades. Normalidades acreditadas por muitos, mal vistas por outros e nem sempre lutadas com as devidas forças por todos. Entre elas: o bem viver, o sistema de saúde e de educação com qualidade para todos, o trabalho digno, a solidariedade, a democracia, o desenvolvimento integrado e sustentável, a justiça social, a defesa dos direitos humanos e ambientais, a ética…

Nosso futuro poderá ser saudável, feliz e sustentável se soubermos tirar muitas máscaras, resistir às crises sistêmicas de forma criativa, superar muitas anormalidades e tornar reais as normalidades vitais. As desordens e as crises generalizadas, como as de agora, são oportunidades para tomarmos decisões: ou fortalecemos as normalidades que promovem e garantem a vida ou seguimos colocando máscaras em cima das anormalidades que produzem o caos. Parafraseando o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905 – 1980): ‘Mais importante do que aquilo que fizeram/fazem de nós, é o que nós fazemos com o que fizeram/fazem de nós’.

 

 

 

 

 

 

 

A esperança na ordem do dia

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“Quem espera sempre alcança”, afirma o ditado popular. Não creio que seja assim. Na verdade, nem sempre alcançamos aquilo que esperamos. Tampouco, regularmente esperamos tudo o que alcançamos. É de supor ainda que em certas ocasiões não conseguimos esperar como deveríamos. E, se não bastasse, muitos há que já deixaram toda esperança se acabar.

Com frequência também ouvimos dizer que “a esperança é a última que morre”. A afirmação nos faz pensar na capacidade da esperança nos projetar para o futuro. Por outro lado, o adágio acena para a possibilidade do fracasso desta projeção, dado que a esperança pode “morrer”. E em morrendo, instala-se o caos. Esta parece ser a nossa situação nos tempos atuais em que os índices de ódio e violência crescem, a arrogância se aprofunda e as pandemias tomam conta.

A esperança é mais que um sentimento ou um simples componente cultural. É um constitutivo antropológico que dá estrutura, direção e sentido à vida pessoal e social, quer no nível histórico ou para além da história. Ela permite que se distribua no tempo e no espaço os desejos e ansiedades inerentes à condição humana. Quem espera, formula convicções e faz apostas. Portanto, ao pensarmos o perfil da esperança estamos, em última análise, pensando no horizonte utópico que possibilita enfrentar desafios e crises.

Nas mais diversas circunstâncias da vida, apoiamo-nos na esperança. Assim, ao fazermos uma viagem, esperamos voltar ilesos de acidentes ou assaltos. Quando vamos ao médico, esperamos que ele diagnostique nosso problema e dê o tratamento correto. Quem é cristão, entre outras, alimenta a esperança da ressurreição final. Quando elegemos um governante, depositamos nele a esperança de dias melhores. Mas, nem sempre é assim. Muitas vezes nos decepcionamos. E muito!

A esperança é algo dinâmico, assim como a própria vida. Diante de qualquer situação, ela pode se manter inalterada, aumentar ou diminuir de intensidade. Pode também virar desencanto e ceticismo. O cético é um “crente” que perdeu a confiança em si e/ou nos outros; que se desincompatibilizou com a esperança. Este fenômeno parece cada vez mais intenso em relação à política, à democracia, às instituições, à vida familiar e social… O ceticismo gera instabilidade, insegurança, confusão e angústia existencial. Anuvia horizontes, congela utopias e enfraquece as lutas.

Na ordem do dia, o fim da esperança pode ser visto e assumido de duas maneiras distintas: 1) Como vitória do ceticismo e da indiferença, paralisando e inviabilizando qualquer esperança possível. 2) Como finalidade, meta, objetivo a ser buscado, não obstante as dificuldades existentes. Que nunca nos cansemos de renovar as esperanças e de dar-lhes razões pelas quais valha a pena viver e lutar. A vitória de quem espera é esperançar a vitória. Que não esperemos apassivados por dias melhores. Certamente não viveremos somente de esperanças, quando a solidariedade for o caminho!

Máscaras e ilusões

Inicio dizendo que não abro mão das minhas máscaras. Tenho uma de algodão e outra de tnt. Só saio de casa em casos de inevitável necessidade, conforme orientam as pessoas sensatas e responsáveis. Sempre que me “des-isolo”, meto uma máscara na cara. E por aí me vou sentindo-me um extraterrestre. Dizem que assim, mascarados, ficamos um pouco mais protegidos dos humanos contaminados. E podemos evitar de contaminar outros, caso sejamos nós os contaminadores. Não duvido!

Quando se põe uma barreira em algum lugar, fica mais difícil a entrada e a saída de certas coisas e/ou pessoas. Uma máscara pode ser bem eficaz para barrar a entrada de mosquitos ou assemelhados. Porém, para o coronavírus, não sabemos exatamente sua eficácia por conta de seu tamanho. Segundo o infectologista e Prêmio Nobel de Medicina, doutor Stefan Cunha Ujvari, cabem cem milhões de vírus na cabeça de um alfinete. Então, se o vírus tiver mesmo a intenção de ingressar no corpo humano, uma máscara de tnt ou algodão poderá não garantir segurança total.

As máscaras serão uma ilusão? Não é propriamente uma crítica a elas, que agora viraram mais um item de mercado comum, ao lado do álcool e do sabão. Elas fazem o que podem diante do coronavírus, que se tornou uma triste realidade mundial. Quando essa pandemia passar, deixaremos de usar máscaras, mas muitos seguirão vivendo na ilusão de que tudo voltou ao normal. Iludidos de que, tendo voltado “ao normal”, continuarão achando que terá ficado tudo bem.

Na verdade, ao “voltarmos ao normal” não estará tudo bem porque a pandemia é estrutural e segue anormal. Não é mera onda passageira ou conjuntural, como um temporal que pouco mais, pouco menos, passa. Precisamos agir contra as ilusões para tirar todas as máscaras. Mas só conseguiremos tirar as máscaras se antes vencermos todas as ilusões. Nesse momento é fundamental superar a ilusão de que a normalidade é o fim do coronavírus. Ocorre que os vírus são múltiplos e de diversas ordens. Existem aqueles do ódio, da indiferença, do preconceito, da arrogância, da violência, do consumismo, do desejo de acúmulo ilimitado, do individualismo, etc. Assim, nossa luta terá de ser permanente.

O antídoto para o coronavírus é a solidariedade e o antídoto para o individualismo e outros tipos de vírus é a construção de uma sociedade solidária. A solidariedade é “remédio” genérico e ao mesmo tempo específico para todas as idades e doenças. Pode ser utilizado como medida preventiva e como tratamento curativo. Solidariedade não tem contraindicações. É recomendada para a área da economia, da política, da cultura, da religião, tanto no âmbito interpessoal, como familiar, comunitário, social, nacional e planetário. A natureza também requer nossa solidariedade para que possa continuar com seus pulmões funcionando e nos permita seguir respirando o nobre sopro da vida!

Solidariedade gera solidariedade!

A doença e a morte estão vindo de roldão, por atacado. E causam dor, terror, medo e pânico. Não que não soubéssemos da sua existência. Afinal, quem nasce, um dia vai morrer. Ocorre que agora, com o coronavírus, ela se mostra tão iminente e aterradora como talvez ainda não tenhamos experimentado. O que fazer diante dessa realidade? É a pergunta que está no ar mundo afora. As respostas e consequências têm sido as mais diversas possíveis.

Mas, enquanto a pandemia, associada a muitas outras causas, continuam retirando o sopro da vida de tantas pessoas, não podemos deixar nossa razão, nossa consciência e nossos sentimentos caírem na indiferença, no individualismo suicida e genocida, na descrença e no desespero. É preciso agir com os instrumentos que temos e construir outros que possam ser eficientes. E, todos/as nós podemos fazer algum gesto solidário. Afinal, solidariedade gera solidariedade, do mesmo modo que “gentileza gera gentileza”, como disse José Datrino (Profeta Gentileza).

 Tomo a liberdade para relatar uma simples experiência com a qual estou envolvido. Ano passado, a Campanha da Fraternidade promovida pela Igreja Católica nos convocava para ações vinculadas às políticas públicas. Pensando nisso, elaboramos, em conjunto com a Associação Asas da Esperança e Liberdade (ASELIAS), um projeto a fim de pleitear recursos do Fundo Nacional de Solidariedade, constituído com dinheiro da coleta da Campanha da Fraternidade. Obtivemos carta de recomendação do bispo dom Jailton de Oliveira Lino, da Diocese de Teixeira de Freitas/Caravelas, e o projeto intitulado “Educando para a Cidadania” foi aprovado. Em seguida o recurso foi enviado para dar início ao trabalho.

 O projeto consiste num curso de 10 meses, com encontros semanais para 30 catadores/as que trabalham e vivem do lixão da cidade (agora se transfigurando em aterro sanitário). Os encontros acontecem na casa da enfermeira Creuza, no Bairro Ulisses Guimarães, gentilmente cedida para essa finalidade. Todos os domingos pela manhã, catadores/as, um grupo de crianças (seus filhos), se reúnem com coordenadores/as voluntários do projeto e educadoras. Ali acontecem trocas de experiências, partilhas de dificuldades e sonhos. Ensina-se e aprende-se a ler, escrever, fazer as operações matemáticas, etc. Reflete-se sobre a vida pessoal, familiar e social, cuidados com higiene e saúde. Estimula-se a solidariedade e procuram-se maneiras de fortalecer a organização da cooperativa dos catadores/as. Também sempre é servida uma refeição para os participantes.

Mas, agora tudo está parado. O projeto foi suspenso temporariamente. O lixão, último local e recurso que restou para os catadores/as buscarem sua sobrevivência, foi interditado. E não podia ser diferente. Todos nós fomos obrigados a ficar reclusos pela imposição do coronavírus. Sabemos que se desrespeitarmos essa ordem, poderemos pagar com nossa própria vida. Mas, enquanto tudo isso acontece, a fome e outras necessidades próprias de todos os viventes se mantém e precisam ser supridas.

Então, a solidariedade se torna ainda mais necessária. Felizmente, ela está emergindo em muitos lugares e de muitos modos. Eis que algumas pessoas atenderam ao apelo do grupo “Chama”, que na cidade desenvolve ações solidárias em diferentes épocas do ano, visando socorrer os mais necessitados. O grupo recolheu e nos entregou 16 cestas de alimentos. Nesse domingo (29/03), no local onde acontece o projeto com os catadores/as, observando todas as orientações dos órgãos de saúde, fomos entregar as cestas de alimentos.

Ação rápida, distanciamento recomendado, em espaço aberto… Lá estavam os catadores/as com olhar de alegria que se sobrepunha à tristeza que nos atinge nesse momento. No semblante de todos/as estava estampada a mensagem: ‘Afinal de contas, alguém se importa com a gente’. Tomando a palavra, perguntei se estavam cientes do grave problema trazido pela pandemia do coronavírus e dos cuidados que precisamos ter. Em uníssono, disseram que sim.

Em seguida, somente eu de máscara, disse que precisava redobrar os cuidados porque minha família está muito longe daqui e se ficar doente a situação poderá ser muito complicada. Então, prontamente alguém disse: “Que Deus livre o senhor de todas as doenças e males. Mas, caso fique doente, eu vou lhe cuidar”. Vários dos catadores/as que ali estavam repetiram o mesmo. Diante desse conjunto de solidariedades, não tive mais palavras. Só chorei!

 

 

 

Por que Jesus morreu e para quem ressuscitou?

Para alguns, as perguntas acima podem parecer obvias demais. Para outros talvez sejam inconvenientes. Outros ainda podem achá-las extremamente complexas e perturbadoras. Para os incrédulos, quiçá sejam irrelevantes. Mas, afinal, por que Jesus morreu? Que Ele, o nazareno, nascido em Belém, tenha morrido é fato histórico. Igualmente, é fato histórico que tenha sido crucificado e não morrido de morte natural. Sua morte foi produzida da forma mais brutal, utilizada pelos romanos para banir bandidos, indivíduos perigosos, desordeiros, malfeitores.

Custa-nos entender que nos derradeiros momentos da vida de Jesus, a multidão dos seus seguidores sumiu. O desaparecimento deu-se pelo medo, decepção, descrença ou mudança de posição. Muitos que o seguiam, manipulados e atiçados pelos chefes dos sacerdotes e anciãos, de repente, passaram a gritar ‘crucifica-o e soltem o bandido Barrabás’ (Mt 27, 21-22).  Isso também é fato histórico, tanto quanto o foi a permanência fiel até o final de algumas mulheres e bem poucos homens.    

Mas, a dupla pergunta posta no título desse texto nos leva a pensar para além dos fatos históricos, materializados no tempo e no espaço. Coloca-nos a necessidade de interpretá-los. Enquanto o fato histórico é dado, podendo ter mais ou menos detalhes de acordo com as fontes, as interpretações do fato podem ser múltiplas, dissonantes e até opostas. Ocorre que as interpretações dos fatos, e desse em particular, incluem elementos culturais, espirituais, antropológicos, psicológicos, etc.

Sobre a leitura acerca da morte de Jesus há de se ter alguns cuidados. Um deles é o de não espiritualizar o fato, desconsiderando a sua historicidade ou, por outro lado, não restringi-lo a um mero fato histórico. É igualmente importante evitar leituras fatalistas dos fatos históricos. A afirmação de que ‘a morte de Jesus foi vontade de Deus’ poderá representar uma interpretação determinista na qual Deus configuraria uma vontade torpe a ponto de desejar a morte cruel de seu Filho.

Daí que a forma de interpretar os fatos pode mudar totalmente o sentido da história. Parece mais adequado afirmar, portanto, que Jesus foi assassinado (na cruz) em razão de fazer a vontade de Deus que era anunciar o seu Reino baseado no amor fraterno, na justiça para todos e na solidariedade universal. Em decorrência de levar essa causa até as ultimas consequências, acabou por ser crucificado.

Na interpretação dos fatos, é fundamental entender que Jesus foi condenado e morto por um processo com três motivos: um político, outro religioso e mais um econômico. O político por que foi assumindo a liderança de uma grande multidão que o quis transformá-lo em rei, o que confrontou com os poderes constituídos. O religioso, porque se disse Filho de Deus, retirando essa prerrogativa da qual o imperador se achava investido. O econômico porque pregou o tempo todo o amor aos pobres, a fraternidade, a justiça social, a distribuição do pão e das riquezas.

Pelos motivos citados, os donos do poder e representantes da lei o reprovaram por inteiro. Porém, a leitura da morte de Jesus levando em consideração essa tríplice motivação não exclui, não diminui e nem substitui a interpretação teológica, religiosa e espiritual do fato histórico. Antes ao contrário, lhe dá um sentido mais abrangente e significativo que, neste caso, é a razão da fé que se prolonga em todos os cristãos.

E para quem Jesus ressuscitou?  Enche-se de significado aos que creem afirmar que Ele morreu e ressuscitou para nos salvar. Para redimir a humanidade de todos os pecados. Equivale dizer que seu gesto é a demonstração mais cabal do amor-doação. E que emerge daí o exemplo de que o amor levado às últimas consequências é o caminho para a transformação completa da vida, que se torna eterna. Feliz Páscoa aos que na ressurreição crêem e a todos os outros também!

 

A revolução do cuidado

Desde crianças aprendemos o poder revolucionário do cuidado. Ao ouvirmos o termo cuidado, paramos, repensamos, voltamos atrás, evitamos ir ou, dependendo da situação, saímos em disparada. Ele nos alerta sobre a importância e/ou necessidade de mudar de atitude. A expressão cuidado é polissêmica, ou seja, carregada de variados significados. Se, por um lado, nos indica um quadro de risco ou perigo, por outro pode retratar práticas e comportamentos de zelo consigo, com os outros e com o meio ambiente no qual nos inserimos.

Eis que de repente, não mais que de repente, um vírus oriundo provavelmente do morcego chega e nos diz: ‘Atenção galera mundial, estou aqui’. E agora, José, Maria, fulano, beltrano e sicrano? O que fazer de modo urgente e amplamente eficiente? O vírus responde: ‘Se não forem prudentes e não usarem os cuidados necessários, faremos uma boa parceria!’ Diálogo inusitado e incômodo que nos obriga a pensar no modo de vida que a sociedade capitalista, consumista, individualista, insensível, odiosa, intolerante e insustentável adotou.

Chegamos assim a esta situação limite e a outros limites. O Planeta Terra está a cada ano entrando mais cedo em déficit com sua capacidade de suportabilidade por conta das interferências humanas. De acordo com a Global Footprint Network, em 2019 o planeta atingiu o esgotamento de recursos naturais que poderiam ser renovados sem custo ao ambiente mais cedo da história, ou seja, em 29 de julho. Em situações limites – sejam pessoais, coletivas ou planetárias (como é o caso) – percebemos quão frágil é nossa vida. Vemos agora com mais clareza o quanto dependemos uns dos outros e como “tudo está interligado como se fossemos um”!

Enquanto estamos confinados em nossas casas pela ditadura virulenta, temos a oportunidade de refletir sobre o rumo da história humana. A propósito, por esses dias alguém pôs em circulação nas redes sociais uma declaração emblemática: “O mundo ficou doente por causa da baixa humanidade”. Dias depois um morador em situação de rua no Reino Unido ilustrou a afirmação: “Esse vírus não me preocupa porque ninguém precisa de mim mesmo”. Sociedade, a nossa, que adoeceu também pela sua baixa sustentabilidade.

Agora, além das medidas rigorosas no sentido de cuidar da saúde pessoal e coletiva, é hora de pensar concretamente maneiras de criar um mundo novo, possível e necessário. Isso significa: novas relações sociais, outro sistema econômico, outra forma de produzir, de consumir e de tratar os resíduos. Outra maneira de ver a vida, o meio ambiente e nossa relação com o transcendente. Enfim, fazer “novas todas as coisas”, tal como João ouviu do eterno e proferiu no Apocalipse (Ap 21, 5).

Novas relações sociais baseadas no respeito ao diferente, na tolerância, no amor ao próximo, na valorização do ser, do saber e do fazer dos outros. Novo sistema econômico, baseado na solidariedade, na justiça distributiva, na equidade, na diminuição das extremas desigualdades de renda e riqueza, no fortalecimento das estruturas de promoção e cuidado da saúde. Nova forma de produzir, com base na agroecologia, na agricultura familiar, orgânica, sintrópica e biodiversa. Nova forma de consumir, evitando o consumismo e priorizando a segurança e a soberania alimentar, etc.

O recado que o vírus nos traz aponta para a necessidade de cuidarmos da Casa Comum assim como estamos sendo orientados e obrigados a cuidar (limpar) a nossa própria morada. Porém, não podemos esquecer que muitos não têm casa, nem água, nem cama, nem comida, e até vivem dos/nos lixões. Seres também constituídos de dignidade, mas sem os direitos fundamentais garantidos. Contra esses excluídos, alguns seguem achando que eles não têm direitos porque não os merecem. Todavia, essa forma de pensar não ajuda em nada a mudar a situação da Casa Comum e de seus habitantes.

Associo-me a Eduardo Galeano, que defendeu o direito ao delírio, em texto publicado por ele com esse título na virada do milênio. Entre outros belos delírios/desejos, afirma: “O mundo já não se encontrará em guerra contra os pobres, mas sim contra a pobreza… e cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro”. Tal como o sonho não pode ignorar a realidade, não podemos deixar de aprender com as lições extremamente duras e doloridas trazidas pelo coronavírus. É hora de mudar. Depois poderá ser tarde demais. Adiante, pois, com o cuidado coletivo. Ele é revolucionário!